Há cerca de duas semanas disseram-me que eu andava com uma aura negra. Apercebi-me que raro era o dia em que não havia alguém a perguntar-me se eu estava bem, embora a resposta estivesse estampada no meu rosto. Uma colega apanhou-me a chorar na casa de banho do trabalho. Deu-me a mão e disse: se quiseres falar... e deixou-me sozinha, porque percebeu que era assim que eu queria estar.
Dou por mim a lembrar-me dos versos de uma canção: porque eu só quero ir aonde eu não vou, porque eu só estou bem onde eu não estou, como se estes versos fossem o eco do meu íntimo. Quero estar em qualquer outro lugar, e sei que chegando lá, quereria outro.
Recentemente fiz um exercício de reflexão, o balanço da primeira metade do ano.
Talvez esse pequeno exercício me tenha ajudado a desbloquear qualquer coisa aqui dentro. Talvez porque pus para fora o que me sufocava cá dentro.
Se está tudo bem comigo? Está. Vai estando. Em análise são problemas comuns, ordinários desta vida de adulto, que está longe de ser "aquela cena muita fixe" que imaginávamos que seria nos nossos inocentes e ignorantes 15 anos, quando queríamos crescer rápido e ser independentes, e donos da nossa vida, e mudar o mundo, e ser livres, e conquistar todos os sonhos com a mesma leveza com que uma criança brinca com uma bola. Só que não.
No entanto, à minha volta, com pessoas que amo e estimo muito, tem sido um rol de desgraças: mortes, doenças graves, problemas vários. E não me importo nada de ser a sua almofada, onde elas choram as mágoas, partilham os medos e as angústias. Desde muito cedo que as pessoas se sentem à vontade para falar comigo. E na maioria das vezes é só o que querem: falar, pôr para fora. E eu devia mesmo ter seguido aquele conselho, de há muitos anos, de ir para a área da psicologia. Provavelmente estaria onde estou hoje, a trabalhar numa área "nada a ver".
Dizia que não me importo, até porque ao ouvir os outros, esqueço-me de mim. Ouvir os verdadeiros dramas dos outros faz-me pensar que eu não tenho problemas, faz-me relativizar aquilo a que ando a dar demasiada importância e me anda a esgotar.
Contudo, também eu sou humana e tenho os meus dias. Na semana passada, num dia mau, mesmo mau, eu estava mal, doía-me a cabeça, sentia tudo a explodir cá dentro, uma vontade de chorar de raiva e frustração, e uma amiga precisava ligar-me à noite. Precisava falar. Foi um dia particularmente difícil, e cheio. Reunião de condomínio até às 21h, jantei às 22h, e, ainda assim, avisei-a que se quisesse ligar, podia. E ouvi. Mas não conseguia dizer nada mais que uns hum hum, pois, e por momentos instalava-se um silêncio que eu queria preencher, mas não sabia como, a minha cabeça explodia. Felizmente ela retomava o relato. E no fim senti, creio, na sua voz que estava mais calma, com as ideias mais claras, ou mais organizadas. Alguém a ouviu, e ela a falar arrumou os seus pensamentos, partilhou os seus medos, expôs as suas inseguranças e fragilidades, como que ao fazê-lo elas se tornassem mais leves. Noutro dia eu teria falado mais. Opinado mais. Naquele dia não tive sequer força para isso (desculpa). No entanto, e apesar do estado lastimável em que eu estava, apesar de ser tarde e más horas e estar exausta, sabia que ela precisava de mim. Precisava que a ouvisse. E eu ouvi. E quando desligou, fui tomar banho e chorei as minhas angústias. Diluíram-se na água que corria e me lavava corpo e, eventualmente, alma.
Hoje, comentei com a pessoa que me disse que eu andava como uma aura negra que aquela expressão me tinha deixado a pensar. Reforçou que tem notado que ando demasiado triste ultimamente, eu que era tão bem disposta e cheia de energia, que fazia questão de criar bom ambiente e fazer as pessoas rirem e agora vê-me isolada e quieta no meu cantinho. Eu disse apenas, sem detalhes, que os últimos meses não têm sido fáceis. Que há situações que, não sendo diretamente comigo, são com pessoas que estimo muito e as tenho ouvido, acabando por absorver as suas preocupações e angústias. Que fico revoltada com histórias de vida que estão a acontecer e não é justo. Não é justo uma rapariga mais nova que eu, com três filhos, super bem disposta e boa onda, descobrir que tem cancro maligno na tiróide. Ou que a sobrinha de 16 anos de um "velho" amigo dos tempos de escola está a lutar contra um linfoma. Foda-se, ela devia estar a divertir-se, a sair com as amigas, a beber os primeiros copos à noite, a apaixonar-se e desapaixonar-se. Angustia-me saber que uma amiga está num sofrimento atroz por ver a irmã a lutar pela vida, uma luta inglória e devastadora, que está a deixar sequelas graves. A irmã tem a minha idade, dois filhos pequenos, um futuro pela frente. Um amigo que se apressou a editar e publicar o seu livro, porque uma doença grave veio, e lá está ele numa luta pela vida, porque ainda quer viver e tem muito que fazer. Só que as notícias não têm sido animadoras. Morreu a avó do Gandhe, no mesmo dia morreu o pai de uma grande amiga, recentemente o sogro de outra grande amiga, porque não bastava ter a irmã doente, também tinha o sogro em estado terminal de cancro. E eu sinto-me tão impotente, porque quero ajudar todas estas pessoas, que têm de se fazer fortes para todos os outros, como se não lhes fosse permitido fraquejarem, chorarem ou simplesmente desabafarem o que lhes vai na alma, e não consigo. Só as posso ouvir. E soubessem elas como muitas vezes ao telefone ou nos canais de conversação online estou a ouvi-las/lê-las com as lágrimas a caírem-me pela cara.
A minha aura negra é este acumular de nuvens sombrias que pairam sobre mim. É eu sentir-me na pele daquelas pessoas e pensar: e se fosse eu? É aqui que vem a puta da solidão, aquela que existe por causa desta orfandade de família viva, que não quer saber de mim, que nunca quis, que mais valia que eu não tivesse nascido. Quem teria eu junto ao meu leito se estivesse meses num hospital a lutar pela vida?... Ninguém.
E porém sei que há várias pessoas que me vêem, que vêem a minha aura negra, a tristeza nos meus olhos, que estão à espera que eu seja capaz de falar para me ouvirem... algumas talvez me visitassem, com um inútil ramo de flores, se fosse eu a estar semanas num hospital. E sou grata por essas pessoas. No entanto, há este buraco negro dentro de mim, este vazio que ninguém pode preencher. E eu quero ignorá-lo. Tem dias que consigo. Tem dias que não.
Vejo todos os sinais de alarme: depressão à vista! Há coisas dentro de mim que têm mesmo de ser resolvidas. Curadas. Fechadas. Seladas. Para me libertar.
Já me informei de psicólogos na zona, já pedi referências, já vi preços. E também já vi que é uma especialidade não contemplada nos seguros de saúde que tenho. E sabendo que não é como ir ali ao dentista e em duas consultas ter o problema resolvido, ando aqui a pensar que há certas especialidades na saúde que não são para toda a gent€. E infelizmente a saúde mental ainda é muito relegada para um plano de "menor" importância.
Há pouco frisei, reiterei e deixei bem claro a uma amiga que eu estou aqui com e para ela. Para chorar comigo e a seguir rirmos de parvoíces. Para partilhar comigo a dor que guarda para não dar parte de fraca. E digo-o de coração e com sinceridade. Estou aqui. (quase que parecia a Maria Leal agora: Pandora aqui só para vocês - momento parvo do post).
Quanto à minha aura negra, vai desvanecer-se. Eu sei que sim. Que eu tenha coragem para a enfrentar, sabedoria para a soprar para longe. Que fique apenas a lição que a vida me quis dar com esta fase. Ainda estou a tentar descobri-la, mas hei-de lá chegar. Já a missão de vida, creio que a estou a encontrar. Parece que sou boa a ouvir pessoas e a aliviar-lhe as dores da alma. Mesmo nos dias e que só consigo dizer hum hum, pois... pelo menos isso. A ter ter algum valor, que seja a ajudar quem precisa.