Estórias dignas do divã de Freud
Quando se nasce e cresce no seio de uma família disfuncional, anormal e com tantas complicações, intrigas, hipocrisias, ódios, o objectivo, quase sonho de vida, é vermo-nos livres e longe daquela insanidade, sob pena de ficarmos tão ou mais afetados como aquela gente e perpetuar o ciclo familiar doentio. Foi assim que cresci. Foi assim que aguentei muita coisa. Foi com este objetivo em mente que me mantive à tona, agarrada a uma tábua de salvação imaginária, que tantas vezes era tão frágil, tão ténue, tão pouco para aguentar tanto, que por pouco, muito pouco não sucumbi e me deixei afundar. Literalmente.
Há um alívio enorme quando nos sentimos livres. Qual pássaro que viveu aprisionado e tem a liberdade para respirar e voar. Mas há outro preço a pagar. E eu acredito que tinha noção desse preço. E continuo disposta a pagá-lo. É um permanente vazio e solidão que se sente. Há uma parte importante que falta. Verdade que nunca lá esteve, mas o que resta é um enorme buraco negro, vazio, frio, que nada nem ninguém pode preencher. E quando me perguntam porque nunca falo da minha família, eu respondo que sofro de uma espécie de orfandade de pais vivos.
Revi familiares neste casamento de um primo afastado. Temi sentir os olhares reprovadores, mas não. Pelo contrário. Senti que, finalmente, quase que por milagre, tios e primos têm noção de quem é o vilão e a vítima. E quando me perguntavam pela minha mãe e eu respondia apenas e só: não sei, há um ano que não nos vemos nem falamos - as pessoas, que por acaso também estão de relações cortadas com ela, passavam-me a mão no rosto, com um olhar que só agora, já eu adulta, independente e livre, me dão como conforto. "Deixa lá, estás bem agora!"
Pois estou.
Mas custa esta solidão de não ter aquela porta onde bater, aquele, aquele calor afetivo; há um vazio que ninguém pode preencher, porque pai e mãe ninguém substitui.