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Estórias na Caixa de Pandora

Estórias na Caixa de Pandora

06
Abr16

Perdi a carteira (exercício de escrita criativa)

O sítio proibido é o mais apetecido. – Lá diz a vox populis. 

A arrecadação da nossa escola primária, lá da aldeia, tetos altos, porta de madeira pesada, recreio de areia e árvores para trepar, a arrecadação era aquele imaginário que nos lembrava o sótão da casa da avó, cheio de relíquias e tesouros por descobrir. 

O que mais nos deslumbrava na arrecadação eram aquelas carteiras em madeira, tampo da mesa inclinado, que levantava para guardar os livros, e tinha uns buracos para os frascos de tinta permanente usados pelas nossas avós, quando anos e anos atrás andaram elas naquela mesma escola, tetos altos, porta de madeira pesada, recreio de areia e árvores para trepar. 

Não havia muitas carteiras dessas na arrecadação. Duas ou três, ainda em bom estado, guardadas com o cuidado de quem quer preservar um pedacinho de passado. E nos armários pesados os antigos livros de ponto, o registo dos alunos daquela escola ao longo dos anos. Mas não era isso que nos cativava a atenção. Eram aquelas carteiras, onde gostávamos de nos sentarmos e nos sentirmos abraçadas naquela união entre o banco e o tampo partilhando as marcas deixadas pelas mãos de quem ali aprendeu a juntar as letras e a rabiscar contas.  

Nós também queríamos que aquelas carteiras fossem as nossas. Lembravam-nos a Ana dos Cabelos Ruivos, desenhos animados que víamos com devoção inocente. Todas queríamos ser a Ana dos Cabelos Ruivos: corajosa, traquina, reguila, aventureira, doce… 

Nunca tivemos aquelas carteiras na escola, estavam guardadas na arrecadação, para onde, de vez em quando, nos esquivávamos e onde brincávamos à Ana dos Cabelos Ruivos a aprender a juntar as letras e a rabiscar números naquelas carteiras que nos envolviam num abraço mágico. 

Sinto-me a sorrir, de olhar perdido no horizonte da janela do comboio. Perco-me na paisagem que fica para trás. Suspiro com ternura pela lembrança daquela carteira mágica, guardada como tesouro na arrecadação da escola, ainda de tetos altos, porta de madeira pesada, mas sem meninos a encher o recreio de areia e a trepar às árvores. Pergunto-me se ainda lá estará? Gostava de ter uma. E sentar-me-ia com a filha que está por nascer, a ajudar a juntar letras e a rabiscar números, a contar-lhe as histórias da Ana dos Cabelos Ruivos, assim, enlaçadas pela magia daquela carteira. 

Próxima paragem… - ouço a voz metálica. É a minha. Cheguei ao destino. Volto à realidade. Levanto-me, pego no casaco, vou para a porta, segurando-me enquanto o comboio abranda. Menina, menina! Viro-me. A sua carteira. Sorrio. Com a lembrança da perdida carteira da minha velha escola primária, ia perdendo a carteira de mulher adulta no comboio.  

 

Um agradecimento especial à doce Alice, que me inspirou neste jogo de homonímia. 

 

4 comentários

  • Imagem de perfil

    Pandora

    07.04.16

    Um comentário que podia ser post. E concordo com tantas das tuas palavras. Aliás, cedo me apaixonei pelas palavras que escrevias, sentia-lhes o sabor, a emoção, a alma. Todos os elogios que te fazem à tua escrita são mais que merecidos, e sei que isso embaraça quem se acha sempre tão pouco digno de reparo quanto mais de elogios.
    Outra coincidência: também li Júlio Dinis nos meus 13/14 anos. Devorei as coleções de livros juvenis e quis mais... Júlio Dinis  chegou-me pelas revistas do Círculo de Leitores. E tenho tanta vontade de os reler. 
    Image
  • Sem imagem de perfil

    Alice

    07.04.16

    Estava tão compenetrada a escrever o comentário anterior e tive de interromper tantas vezes, que me esqueci de "assinar". Mas chegaste lá.


    Não sei se as nossas semelhanças serão coincidências ou talvez esta coisa dos astros conspirarem seja mesmo verdade e os de signo Touro tenha muitas mais parecenças entre si do que apenas a teimosia , por tantos apontada, e pelos visados assumida.


    E se não te importares, acho que este comentário poderá dar um post, com um assunto menos parolo do que os posts de ontem. E é este o registo daquilo que sou, e na linha daquilo que habitualmente caracteriza o meu blogue. Não consigo por-me a inventar sobre o que não sou, o que não vivo, ou o que os outros gostariam que eu fosse...


    beijinho, Menina Pandora. [Vendo bem, já não conhecemos pr'aí desde 2009/2010. lembro-me de ter escrito  um texto sobre eles - os nossos companheiros- com o qual te identificaste e comentaste. Outros tempos, outros blogues, e continuando a  existirem coisas que nunca mudam; mudamos nós.]
  • Imagem de perfil

    Pandora

    07.04.16

    Não me importo nada, antes pelo contrário. Gosto, e desde que te leio que assim o é, de te ver a escrever com alma. Não é para todos. Nem para muitos. Será caraterística da sensibilidade dos Touros? Image
    Beijinho, e já lá vão uns anitos, com mudanças, mas com a mesma essência. 


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