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Estórias na Caixa de Pandora

Estórias na Caixa de Pandora

08
Jan24

Dia estranho

Dia estranho, este. Paira no ar uma atmosfera pesada, um silêncio sepulcral. Os semblantes estão carregados, e pelas paredes ecoam pequenos murmúrios: os detalhes que alguns curiosos procuram saber, a perplexidade geral que atingiu todos este fim de semana.

Faleceu uma colega de trabalho. A notícia espalhou-se no sábado, qual fio de pólvora seca.

Foi encontrada sem vida, em casa.

Reconstroem-se os últimos passos, as últimas palavras, os últimos telefonemas. Procura-se preencher as lacunas de uma história cujo desfecho atingiu toda a comunidade e a todos deixou em estado de choque.

A vida continua, os ponteiros do relógio não param, as horas seguem, e olhar para a secretária vazia, ainda com tudo o que lhe pertencia em cima, é uma visão dolorosa para quem partilha o open space. A crua confrontação com a mortalidade. A do outro e a nossa. 

Nos rostos vêem-se diferentes expressões. Há os que calam as emoções dentro de si, há os que choram. Há sobretudo perplexidade e contenção. Nas palavras. Nos gestos. Nos olhares que se desviam do desconforto das palavras. 

 

26
Ago20

O texto que tenho adiado escrever...

Quem segue a Caixa no Instagram sabe o que aconteceu neste último mês. Sabe que há um mês comecei com obras em casa (pinturas de paredes e tetos com alguns arranjos de fissuras pelo meio). Sabe que há um mês o meu pai deu entrada no hospital e depois de uma semana excessivamente intensa a nível emocional, com as notícias dia após dia a conduzirem a um desfecho previsível, esperado mas que nada nos prepara para o derradeiro momento, aquele em que, depois de ter sido chamada ao hospital para me despedir dele, me comunicam que faleceu.

Continuo sem palavras para descrever o momento em que esta realidade se abateu sobre mim. Continuo sem perceber muito bem como me tenho mantido de pé a tratar de uma imensa burocracia que enerva, esgota a paciência, suga toda a energia que resta num momento destes.

As férias deixaram de ser férias para tratar de um funeral e desencadear uma série de processos em diversas entidades, processos que ainda decorrem, e ontem, mais um dia de férias queimado para ultimar burocracias, mas afinal ainda há mais uma declaração que é precisa para entregar nas Finanças e fazer uma adição ao imposto de selo e só depois, só depois é que pode voltar cá e prosseguir... e só para iniciar o processo desembolsa x, e desembolsa y e mais o caralhinho para tanto papel e selos timbrados e o raio que parta esta máquina burocrática que empata e entrava e chateia e nos suga vida e dinheiro. A sério que estamos no séc XXI, em plena era digital? A sério que, alegadamente, devido à pandemia, muitos serviços tiveram de agilizar procedimentos? Ah não. Isso era a expetativa. A realidade é que ainda estão mais bloqueados, difíceis de aceder e resolver de uma vez.

Poupo-vos detalhes, porque tudo isto ainda é uma ferida aberta e dolorosa. Recebo o embate da morte do meu pai e, com todas as vantagens e desvantagens que isso acarreta, sou única herdeira. Em cima de mim caem todas as decisões, responsabilidades, despesas. E isto de herdar propriedades é muito giro na boca do povinho ignorante que acha que agora devo ser uma espécie de condessa lá da terrinha. Eu só vejo dinheiro a sair da conta, tudo se paga, os impostos não esperam, os encargos com as propriedades também não e agora está tudo nos meus ombros.

Respiro fundo. Tudo se resolve. Não escolhi que isto acontecesse na minha vida. Aconteceu. Agora é lidar da melhor forma possível. Se haveria momento ideal para pôr em prática o que, também nesta altura, aprendi naquele desafio de auto coaching, que com tanto entusiasmo me inscrevi, foi este. Na semana do internamento e na semana em que faleceu, valeram-me as meditações diárias do desafio, cada dia com um tema a explorar num pre talking. Valeram-me esses momentos em que, durante cerca de 30 minutos por dia, eu estava comigo e a tratar de mim. Encontrei força onde não julgava haver. Mantive um equilíbrio quando achava que ia simplesmente colapsar.

Houve dias difíceis. Muito difíceis. Sei que os haverá. Ainda este fim de semana fui abaixo e andei a chorar descontroladamente com um sentimento de vazio, de estar sozinha no mundo, porque as pessoas que mais amei e de quem guardo as melhores memórias já se foram. Tal e qual como a casa que acabo de herdar, sinto-me vazia, abandonada. Morreram. Foram-se para sempre e não voltam. Ficam aquelas paredes repletas de anos de memórias e histórias de três gerações de uma família.

Houve um momento que me afastei das redes sociais no geral, de pessoas em particular. A silly season a decorrer, o Instagram repleto de fotos de férias, praias, piscinas, famílias, verão no seu esplendor e leveza que deixa as pessoas felizes. E eu a ter de lidar com a dor que a morte de alguém tão próximo deixa, aquele vazio que nada nem ninguém nunca preencherá, enredada numa teia de burocracia que estava a exigir demasiado de mim, a sugar-me a pouca energia que sentia. Houve dias que não atendi telemóvel nem respondi a mensagens. Agradeci ter pessoas preocupadas e a mostrarem todo o seu carinho e apoio. A seu tempo expliquei-lhes, desculpando-me, que precisava do meu tempo de sossego e solidão para carpir a dor, quando ao mesmo tempo a vida exigia demasiado de mim.

O tempo não cura. Acalma. Cicatriza.

Regressei ao trabalho e isso permitiu-me sentir de volta a vida como a conhecia, na sua normalidade que nos faz sentir numa zona de conforto. Voltei a sentir apetite e vontade de comer, voltei a ler, voltei a estar com as outras pessoas. Voltei à minha vida. Diferente. Eu e a vida.

Estou a voltar. Porque a vida continua e eu tenho de continuar. Por mim. Pela memória dos que partiram. Pelos que estão ao meu lado e foram excecionais neste momento tão difícil e doloroso da minha vida.

Estou a voltar. Aos poucos...

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27
Set19

Hoje estou de luto... Amanhã luto!

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O meu avô paterno faleceu. Aquele avô que um dia me disse que eu não devia ter nascido, porque estraguei a vida ao meu pai, o mesmo avô que em pleno dia de natal me proibiu de entrar em casa dele, e eu fiquei na rua, à chuva, sem entender o porquê de tantas coisas que me disse e fez e magoaram, e eu continuava a ir lá até esse dia, o dia que me senti um cão de rua, que toda a gente enxota com nojo.

O meu avô faleceu e eu lamento não ter tido oportunidade de esclarecer umas quantas coisas. De, quiçá,  recuperar um pouco daquele avô da minha infância,  que foi colo e porto de abrigo, que foi mão que ampara e sabedoria que ensina,  que me levou a tantos sítios, que me mostrou tantas coisas. Aquele avô que partilhou comigo brincadeiras e gargalhadas, muitas histórias de vida e ensinamentos. 

Os últimos anos foram agrestes. Ele tinha o seu mau feitio. Tinha as suas manias. E não estando a isentá-lo da sua responsabilidade quanto aos seus atos, acredito que uma boa cota parte das confusões e desentendimentos que houveram tiveram o dedo maquiavélico e manipulador da mulher que me pariu...

Não posso recuperar o tempo. Posso, agora, escolher se guardo mágoa e rancor, ou se guardo o amor incondicional que, durante a minha infância e adolescência, existiu entre nós. Eu escolhi guardar o amor.  No seu derradeiro destino perdoei-lhe as mágoas. Na minha memória quero que prevaleça o avô extraordinário que tive a sorte de um dia ter tido. O avô que tanto me deu, tanto me ensinou,  tanto me mostrou. 

Até sempre avô.  Gosto muito de ti. Sempre gostei. ❤ 

 

08
Jul19

Aura negra

Há cerca de duas semanas disseram-me que eu andava com uma aura negra. Apercebi-me que raro era o dia em que não havia alguém a perguntar-me se eu estava bem, embora a resposta estivesse estampada no meu rosto. Uma colega apanhou-me a chorar na casa de banho do trabalho. Deu-me a mão e disse: se quiseres falar... e deixou-me sozinha, porque percebeu que era assim que eu queria estar.

Dou por mim a lembrar-me dos versos de uma canção: porque eu só quero ir aonde eu não vou, porque eu só estou bem onde eu não estou, como se estes versos fossem o eco do meu íntimo. Quero estar em qualquer outro lugar, e sei que chegando lá, quereria outro. 

Recentemente fiz um exercício de reflexão, o balanço da primeira metade do ano.

Talvez esse pequeno exercício me tenha ajudado a desbloquear qualquer coisa aqui dentro. Talvez porque pus para fora o que me sufocava cá dentro.

Se está tudo bem comigo? Está. Vai estando. Em análise são problemas comuns, ordinários desta vida de adulto, que está longe de ser "aquela cena muita fixe" que imaginávamos que seria nos nossos inocentes e ignorantes 15 anos, quando queríamos crescer rápido e ser independentes, e donos da nossa vida, e mudar o mundo, e ser livres, e conquistar todos os sonhos com a mesma leveza com que uma criança brinca com uma bola. Só que não. 

No entanto, à minha volta, com pessoas que amo e estimo muito, tem sido um rol de desgraças: mortes, doenças graves, problemas vários. E não me importo nada de ser a sua almofada, onde elas choram as mágoas, partilham os medos e as angústias. Desde muito cedo que as pessoas se sentem à vontade para falar comigo. E na maioria das vezes é só o que querem: falar, pôr para fora. E eu devia mesmo ter seguido aquele conselho, de há muitos anos, de ir para a área da psicologia. Provavelmente estaria onde estou hoje, a trabalhar numa área "nada a ver". 

Dizia que não me importo, até porque ao ouvir os outros, esqueço-me de mim. Ouvir os verdadeiros dramas dos outros faz-me pensar que eu não tenho problemas, faz-me relativizar aquilo a que ando a dar demasiada importância e me anda a esgotar.

Contudo, também eu sou humana e tenho os meus dias. Na semana passada, num dia mau, mesmo mau, eu estava mal, doía-me a cabeça, sentia tudo a explodir cá dentro, uma vontade de chorar de raiva e frustração, e uma amiga precisava ligar-me à noite. Precisava falar. Foi um dia particularmente difícil, e cheio. Reunião de condomínio até às 21h, jantei às 22h, e, ainda assim, avisei-a que se quisesse ligar, podia. E ouvi. Mas não conseguia dizer nada mais que uns hum hum, pois, e por momentos instalava-se um silêncio que eu queria preencher, mas não sabia como, a minha cabeça explodia. Felizmente ela retomava o relato. E no fim senti, creio, na sua voz que estava mais calma, com as ideias mais claras, ou mais organizadas. Alguém a ouviu, e ela a falar arrumou os seus pensamentos, partilhou os seus medos, expôs as suas inseguranças e fragilidades, como que ao fazê-lo elas se tornassem mais leves. Noutro dia eu teria falado mais. Opinado mais. Naquele dia não tive sequer força para isso (desculpa). No entanto, e apesar do estado lastimável em que eu estava, apesar de ser tarde e más horas e estar exausta, sabia que ela precisava de mim. Precisava que a ouvisse. E eu ouvi. E quando desligou, fui tomar banho e chorei as minhas angústias. Diluíram-se na água que corria e me lavava corpo e, eventualmente, alma.

Hoje, comentei com a pessoa que me disse que eu andava como uma aura negra que aquela expressão me tinha deixado a pensar. Reforçou que tem notado que ando demasiado triste ultimamente, eu que era tão bem disposta e cheia de energia, que fazia questão de criar bom ambiente e fazer as pessoas rirem e agora vê-me isolada e quieta no meu cantinho. Eu disse apenas, sem detalhes, que os últimos meses não têm sido fáceis. Que há situações que, não sendo diretamente comigo, são com pessoas que estimo muito e as tenho ouvido, acabando por absorver as suas preocupações e angústias. Que fico revoltada com histórias de vida que estão a acontecer e não é justo. Não é justo uma rapariga mais nova que eu, com três filhos, super bem disposta e boa onda, descobrir que tem cancro maligno na tiróide. Ou que a sobrinha de 16 anos de um "velho" amigo dos tempos de escola está a lutar contra um linfoma. Foda-se, ela devia estar a divertir-se, a sair com as amigas, a beber os primeiros copos à noite, a apaixonar-se e desapaixonar-se. Angustia-me saber que uma amiga está num sofrimento atroz por ver a irmã a lutar pela vida, uma luta inglória e devastadora, que está a deixar sequelas graves. A irmã tem a minha idade, dois filhos pequenos, um futuro pela frente. Um amigo que se apressou a editar e publicar o seu livro, porque uma doença grave veio, e lá está ele numa luta pela vida, porque ainda quer viver e tem muito que fazer. Só que as notícias não têm sido animadoras. Morreu a avó do Gandhe, no mesmo dia morreu o pai de uma grande amiga, recentemente o sogro de outra grande amiga, porque não bastava ter a irmã doente, também tinha o sogro em estado terminal de cancro. E eu sinto-me tão impotente, porque quero ajudar todas estas pessoas, que têm de se fazer fortes para todos os outros, como se não lhes fosse permitido fraquejarem, chorarem ou simplesmente desabafarem o que lhes vai na alma, e não consigo. Só as posso ouvir. E soubessem elas como muitas vezes ao telefone ou nos canais de conversação online estou a ouvi-las/lê-las com as lágrimas a caírem-me pela cara. 

A minha aura negra é este acumular de nuvens sombrias que pairam sobre mim. É eu sentir-me na pele daquelas pessoas e pensar: e se fosse eu? É aqui que vem a puta da solidão, aquela que existe por causa desta orfandade de família viva, que não quer saber de mim, que nunca quis, que mais valia que eu não tivesse nascido. Quem teria eu junto ao meu leito se estivesse meses num hospital a lutar pela vida?... Ninguém. 

E porém sei que há várias pessoas que me vêem, que vêem a minha aura negra, a tristeza nos meus olhos, que estão à espera que eu seja capaz de falar para me ouvirem... algumas talvez me visitassem, com um inútil ramo de flores, se fosse eu a estar semanas num hospital. E sou grata por essas pessoas. No entanto, há este buraco negro dentro de mim, este vazio que ninguém pode preencher. E eu quero ignorá-lo. Tem dias que consigo. Tem dias que não.

Vejo todos os sinais de alarme: depressão à vista! Há coisas dentro de mim que têm mesmo de ser resolvidas. Curadas. Fechadas. Seladas. Para me libertar. 

Já me informei de psicólogos na zona, já pedi referências, já vi preços. E também já vi que é uma especialidade não contemplada nos seguros de saúde que tenho. E sabendo que não é como ir ali ao dentista e em duas consultas ter o problema resolvido, ando aqui a pensar que há certas especialidades na saúde que não são para toda a gent€. E infelizmente a saúde mental ainda é muito relegada para um plano de "menor" importância.

Há pouco frisei, reiterei e deixei bem claro a uma amiga que eu estou aqui com e para ela. Para chorar comigo e a seguir rirmos de parvoíces. Para partilhar comigo a dor que guarda para não dar parte de fraca. E digo-o de coração e com sinceridade. Estou aqui. (quase que parecia a Maria Leal agora: Pandora aqui só para vocês - momento parvo do post). 

Quanto à minha aura negra, vai desvanecer-se. Eu sei que sim. Que eu tenha coragem para a enfrentar, sabedoria para a soprar para longe. Que fique apenas a lição que a vida me quis dar com esta fase. Ainda estou a tentar descobri-la, mas hei-de lá chegar. Já a missão de vida, creio que a estou a encontrar. Parece que sou boa a ouvir pessoas e a aliviar-lhe as dores da alma. Mesmo nos dias e que só consigo dizer hum hum, pois... pelo menos isso. A ter ter algum valor, que seja a ajudar quem precisa. 

 

01
Jul19

Pensamento do dia (e uma espécie de balanço do primeiro semestre)

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Dia 1 de julho. Metade do ano já se foi. Anseio pelo verão que poucos sinais ainda deu de si. A única coisa que já fui fazer à praia foi ir até à esplanada, um dia chovia, no outro estava um vento frio que não se podia. Quando daqui a exatamente um mês for de férias continuarei com esta cor de posta de pescada cozida, porque os fins de semana de julho já estão todos preenchidos na agenda, e pouco ou nada resta para uma fugida até à praia, só para estender a toalha e apanhar uma cor. Em boa verdade se diga, olho pela janela e mais parece que vai chover. Continuo a usar roupa meia estação e dias há que rapo frio. 

O primeiro semestre do ano resume-se a duas simples e curtas palavras: uma merda!

Têm sido golpes atrás de golpes. Doenças, mortes, acidentes, chatices, frustrações ao rubro, revoltas engolidas que agora se soltam num vómito descontrolado.

Sinto-me totalmente esgotada. Sem paciência para nada nem ninguém. Alguém, por favor, me leve para uma ilha deserta?! Se bem que no estado em que estou, nem a mim me aguento, portanto façam-me uma sono-terapia. Três meses a dormir. Mas vá, só depois do verão, se é que ele vai, finalmente, chegar. É que eu gosto do verão. Muito. E portanto acalento esta pequenina esperança de agora arrebitar um pouco o estado de espírito.

Sinto-me sozinha. Em parte mea culpa, que tenho esta mania que sou durona e aguento os golpes, que consigo suportar o mundo dos outros às costas, absorver no meu íntimo as suas dores e angústias e preocupações, ter sempre uma palavra, um ombro, uma mão estendida, a opinião que me pedem ou ideias que precisam. E depois as minhas dores, onde ficam? Entaladas na garganta, embrulhadas no estômago. E quando tenho um pouco a coragem de falar levo com respostas que, até pode ser o que preciso ouvir, mas foda-se, um abraço e um "vai correr tudo bem, vais ficar bem, estou aqui" também era bom. Não há quem me ouça, ou queira ouvir. Todos vivem os seus dias, os seus problemas. A sua vida. Eu entendo. Resigno-me.

Sinto-me perdida. Aquilo que acho que sei, que aprendi, que evolui, afinal parece que não, que estava enganada, que nada sei, nada aprendi, nada evolui. Deixo (outra vez) que me façam sentir uma porcaria sem qualquer valor. E sim, à la Gustavo Santos e os seus clichés, eu SEI que sou a primeira pessoa que tem de gostar de si, de se valorizar, de confiar em si e nas suas capacidades. Mas fica difícil com tanta coisa e tanta gente à volta a derrubar, a mandar ao chão, a virar as costas porque não tem tempo, não quer saber, tem mais em que pensar. Ou simplesmente nem se lembram que existo.

Sinto-me sem forças. Já só quero ficar quieta no meu canto, gritar ao mundo:

Não: não quero nada

Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!

Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

(...)

Não me peguem no braço!

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.

Já disse que sou sozinho!

Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

(...)

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! *

* Álvaro de Campos, LISBON REVISITED (1923)

Metade do ano foi-se e eu estou feita em cacos. 

Vamos ver como corre a outra metade. Como chegarei daqui a seis meses. Parecem uma eternidade de tempo, e no entanto passam assim, num estalar de dedos.

As coisas estão a acalmar, é certo. Só que pelo sim, pelo não, ainda não me sinto capaz de respirar fundo, serenar e olhar o horizonte com a coragem e a esperança de que vai ficar tudo bem. De que vou ficar bem.

 

07
Mai19

...

Há dias em que a vida dá uma bofetada nos teus planos, nas tuas expetativas. Há dias em que percebes que estás simplesmente sozinha, entregue a ti própria. Há dias em que isso é motivo para encher o peito de coragem e orgulho. Há dias em que é um soco no estômago que te põe zonza, com vontade de vomitar uma angústia que se embrulha na garganta. 

Hoje levei esse soco.

É fodido!

 

25
Set18

A solidão que dói

Estava de férias quando, abalroada pela notícia da minha amiga, decidi agir em vez de permanecer no “eu gostava, um dia eu vou…”. Procurei informações, liguei, e soube que afinal eu não precisava deslocar-me a outra cidade para me inscrever como dadora de medula. No mesmo dia tornei-me dadora de sangue e de medula. Fiz testes, preenchi questionários, tive uma consulta médica, fui logo para a doação de sangue, onde me deu um fanico (tensão baixa é assim), e saí de lá com um orgulho (e braço dorido) de dever cumprido.

Mas quase fui barrada logo na primeira fase de seleção. No questionário para dador de medula, mesmo no fim, eram solicitados dois contactos de emergência. Preenchi o primeiro com os dados do Gandhe. Deixei o segundo em branco, achando que era opcional. Só que não, e só aceitavam a minha humilde candidatura com preenchimento de um segundo contacto.

Para a grande maioria das pessoas isto é simples e corriqueiro, até devem sobrar opções de preenchimento. Há pai, mãe, irmãos, tios, primos, and so on... mas eu bloqueei, completamente congelada na minha consciente (e dolorosa) solidão. Não há mãe, não há pai, não há irmãos, os primos estão longe, distantes, em vidas tão afastadas da minha, os tios idem… quem me sobra?

Gandhe sugeriu pôr os dados da mãe dele. Que remédio, ou engolia esse orgulho e dava os dados da sogra como meu segundo contacto de emergência, ou vinha-me embora sem sequer ter tentado voluntariar-me para o banco de dadores.

Vim para casa, meia combalida do que se passou durante a doação de sangue, e totalmente aturdida com um vazio que se abriu dentro do meu peito.

À noite, já mais recuperada, entrei em contacto com uma das minhas amigas mais próximas, que ironicamente, vive noutra cidade, expliquei-lhe o que tinha acontecido e perguntei se podia, caso voltasse a confrontar-me com uma situação destas, dar os dados dela. Prontamente me disse que sim, que era uma honra. E agradeci tanto quanto pude, engolindo esta solidão amarga de não ter ninguém na vida.

Ontem voltei a sentir este amargo. Num momento de grande dor e angústia, quis falar e não tinha com quem. Corri mentalmente a lista dos amigos com quem me sentiria à vontade para procurar colo, e felizmente ainda são alguns. Detive-me, no entanto, por não querer incomodar. Têm a sua vida, alguns com filhos pequenos, pouco passava da hora de jantar, estariam ocupados a jantar com a família, a arrumar a cozinha, a preparar as coisas para o dia seguinte, eventualmente a descansar ou a aproveitar para ver uma série, um filme, para namorar ou ler uma história ao filho.

Fiquei sozinha, enrolada no meu casulo, quebrando o silêncio com as soluçantes lágrimas que caíam desamparadas sobre o peito vazio.

Eu sei, tenho este feitio orgulhoso de me fazer de forte e independente. Estupidamente consciente das carências afetivas e emocionais que fazem parte do meu ADN, da minha herança genética e educacional, criei esta fortaleza em meu redor. Mas caramba, é uma muralha de papel. E que não fosse, até os fortes caem e precisam de uma mão estendida, de um ombro que ampare a cabeça que tomba, de um abraço que conforte, de uma palavra que acalme a angústia.

 

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